O grupo de trabalho das Nações Unidas sobre Detenções Arbitrárias concluiu que a detenção do empresário luso-angolano Carlos São Vicente foi arbitrária e apelou à sua libertação imediata e compensação, segundo o parecer definitivo hoje divulgado. Arbitrariedades em Angola, no reio do MPLA? A maioria dos angolanos sabe que é verdade, mas se o dono do país diz o contrário, quem é a ONU para dar palpites?
Os advogados suíços de defesa do empresário, François Zimeray e Jessica Finnelle, recorreram à instância da ONU junto do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos em Março de 2021, seis meses após o empresário ser detido por suspeita de crimes de peculato e branqueamento de capitais.
No parecer definitivo hoje conhecido, e que mantém as conclusões da versão preliminar datada do final do ano passado, o grupo de peritos das Nações Unidas concluiu que a detenção violou a Declaração Universal dos Direitos Humanos e o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e pedem às autoridades angolanas a sua “libertação imediata”.
No mesmo documento apela-se ainda a uma compensação e a uma investigação imparcial sobre as condições em que foi conduzido o julgamento.
“O parecer descreve, ao longo de 16 páginas, as condições de uma detenção injustificadamente prolongada, a violação do direito a um julgamento independente e imparcial, violação da presunção de inocência, negação dos direitos de defesa e inúmeras outras violações de tratados internacionais e leis de direitos humanos”, aponta-se no comunicado dos advogados que consideram que esta “decisão corajosa representa um ponto de viragem decisivo”.
Segundo a defesa de São Vicente, as consequências do parecer são consideráveis tanto em termos de processos iniciados, em curso ou encerrados em Angola, como noutros países: “São ilegais e passíveis de serem declarados nulos e sem efeito”.
No parecer, o grupo de trabalho expressou preocupação com o estado físico e mental de São Vicente, bem como o facto de ter sido preso durante a pandemia de covid-19, sem acesso a cuidados médicos adequados.
Por outro lado, aponta-se também a complexidade do caso e a falta de tempo e condições que dadas à defesa para consultar o processo contra São Vicente.
As autoridades judiciais ordenaram, na altura, a apreensão de bens pertencentes ao empresário luso-angolano, tendo sido pedido também o congelamento de contas bancárias.
O empresário Carlos São Vicente foi condenado em Março de 2022 a nove anos de prisão efectiva, pelo Tribunal da Comarca de Luanda, e ao pagamento de uma indemnização de 500 milhões de dólares (456,7 milhões de euros).
O ex-dono da seguradora AAA foi considerado culpado de crimes de peculato, branqueamento de capital e fraude fiscal, através de um suposto desvio de 900 milhões de dólares da Sonangol (822 milhões de euros).
As autoridades judiciais ordenaram, na altura, a apreensão de bens pertencentes ao empresário luso-angolano, entre os quais a rede hoteleira, tendo sido pedido também o congelamento de contas bancárias.
Carlos de São Vicente, marido de Irene Neto, filha do primeiro Presidente de Angola, Agostinho Neto, foi condenado pelos crimes de peculato e fraude fiscal. Foi acusado de fazer aquilo que é apenas uma parte do que é essencial no ADN do MPLA: Fraude fiscal continuada.
A justiça angolana, no despacho de Acusação contra Carlos São Vicente, considera que o antigo número dois do Presidente José Eduardo dos Santos (Manuel Vicente) cedeu, quando era presidente da administração da Sonangol, a participação da petrolífera estatal na seguradora AAA Seguros ao arguido, de modo gratuito e sem conhecimento dos restantes administradores.
Esta transferência da propriedade da seguradora, detentora do monopólio dos seguros do petróleo no país, permitiu a Carlos São Vicente a criação um império empresarial, que foi é visado pela justiça por fraude fiscal superior a mil milhões de euros, entre outros crimes.
Entre 2000 e até Novembro de 2005, Carlos São Vicente, que já era quadro da petrolífera estatal Sonangol desde 1983 (não por ser genro do herói nacional do MPLA, Agostinho Neto, mas graças à sua competência partidária), desempenhou a função de director de gestão de riscos, área que tratava dos seguros dos trabalhadores e de toda a actividade petrolífera. Manuel Vicente foi presidente do Conselho de Administração (PCA) da Sonangol entre 1999 e Janeiro de 2012, ainda antes de ser vice-presidente da República.
Neste período, em que se cruzaram nos dois cargos, de acordo com o despacho de acusação, e com base na Lei das Actividades Petrolíferas, o Estado angolano desenvolveu uma estratégia de gestão de riscos das operações petrolíferas.
Assim, neste novo contexto, e “no sentido de conformar a actividade seguradora da Sonangol E.P., a 1 de Abril de 1999, por iniciativa do arguido [Carlos Manuel de São Vicente], detendo esta [Sonangol] 100% do capital social, foi criada como Resseguradora Internacional, uma empresa offshore denominada Mirabilis Insurance Limited”, nas Bermudas.
Porque, segundo Manuel Vicente [que foi ouvido pelo Ministério Público no âmbito deste processo, mas não acusado], “todas as restantes companhias petrolíferas expressivas no mundo tinham seguradoras cativas naquele país”.
Esse foi o momento a partir do qual Carlos São Vicente, “devidamente mancomunado com o declarante Manuel Vicente, passou a engendrar um plano de apropriação ilícita de rendimentos e lucros, que viriam a ser produzidos com a implementação do sistema de seguros e resseguros no sector de exploração petrolífera, com vista à evasão de divisas do país e ao enriquecimento ilícito”, lê-se no despacho de acusação.
Desde 2001 qualquer companhia petrolífera internacional tinha a obrigação de criar uma parceria com a Sonangol Holding. No mesmo ano, com a publicação de um outro decreto, foi constituído o co-seguro para os riscos petrolíferos, cobrindo todas as operações em curso no território angolano, “o que retirou o monopólio então atribuído à empresa pública ENSA, concedendo-o à AAA Seguros”.
Coube à direcção de gestão de riscos da Sonangol a responsabilidade de implementar a estratégia e gestão de riscos das actividades petrolíferas e a Carlos São Vicente “a missão de negociar com as companhias os termos dos contratos de exploração e produção de petróleo”.
Em 2000, já tinha sido constituída a Sociedade AAA Serviços Financeiros, apresentada como uma holding, enquanto coordenadora das actividades em Angola e incluía quatro subsidiárias, tendo o Estado angolano 100% do capital social de todas elas.
No intuito de globalizar a empresa AAA, o “arguido com a conivência do declarante Manuel Vicente, oportunamente lançou mão da então offshore Mirabilis Reinsurance Limited, sedeada nas Bermudas, alterando a sua designação, em 2003, para AAA Reinsurance Limited”, lê-se no despacho de acusação.
“Com a estrutura acima concebida, desde o início da sua constituição, inusitadamente, mediante um `acordo verbal` estabelecido entre o arguido e o declarante Manuel Vicente, ficou assente que o grau de participações da Sonangol E.P. no Grupo AAA, deveria ir-se reduzindo e, em contrapartida, a posição do arguido iria gradualmente aumentar como accionista da AAA Seguros Lda., ao longo do tempo”, adianta o documento.
Entretanto, Carlos São Vicente foi nomeado por Manuel Vicente para o cargo de presidente do Conselho de Administração (PCA) da AAA Seguros SA, numa altura em que simultaneamente “num manifesto e gritante acto de conflito de interesses exercia igualmente o arguido a função de director” na petrolífera, realça a acusação.
“Desde essa altura, a relação entre a Sonangol E.P. e o grupo de empresas AAA foi sendo directa e convenientemente estabelecida entre o arguido e o declarante Manuel Vicente, cabendo a este último a supervisão de Gestão de Riscos no quadro do conselho de administração” da petrolífera angolana.
“A partir de 2001, colocando o arguido em prática o `acordo verbal` estabelecido com o declarante Manuel Vicente e com a implantação do negócio e o monopólio dos seguros atribuído à AAA Seguros SA, sem qualquer benefício para a Sonangol E.P., a estrutura accionista do grupo AAA começou a sofrer várias alterações substanciais”, referem os promotores.
“Foi assim, que com as cedências de acções de valores avultados `presenteadas` pelo declarante Manuel Vicente, sem que autorização tivesse da autoridade competente e, aproveitando-se da sua qualidade de PCA da Sonangol E.P., permitiu a redução drástica das acções detidas pela Sonangol E.P. na AAA Seguros SA, de 100% para 10% em benefício do arguido, que se tornou, deste modo, detentor maioritário de 87,89% do capital”.
Para a Justiça angolana, “as alterações que ocorreram e que (…) culminaram com a perda da condição da Sonangol E.P. como accionista maioritária do grupo AAA, em benefício do arguido, desencadearam-se de forma ardilosa, sob a falsa aparência de que se cumpriam todas as formalidades legais”.
Além disso, as sessões presididas por Manuel Vicente no Conselho de Administração da Sonangol, que resultaram em deliberações exaradas pelo Conselho e que, em consequência, vincularam os restantes membros da administração da petrolífera, visando a cedência das participações da AAA, “foram realizadas na ausência” dos outros elementos da administração, acusam os promotores.
Segundo o despacho do Ministério Público angolano, além do crime de fraude fiscal, o empresário foi ainda acusado de peculato e de crime de branqueamento de capitais de forma continuada.
De acordo com a Acusação, o empresário, que durante quase duas décadas teve o monopólio dos seguros e resseguros da petrolífera estatal angolana Sonangol, terá montado um esquema triangular, com empresas em Angola, Londres e Bermudas, que gerou perdas para o tesouro angolano, em termos fiscais, num montante acima dos 1,2 mil milhões de dólares (mais de mil milhões de euros).
Com este esquema, e segundo o mesmo documento, Carlos São Vicente, dono de um dos maiores grupos empresariais privados de então em Angola, terá também conseguido não partilhar lucros do negócio dos seguros e resseguros com outras co-seguradoras, como a seguradora pública ENSA, prejudicando, deste modo, estas empresas, bem como a própria Sonangol.
Uma acusação que, segundo fontes ligadas à defesa do empresário “tem uma fundamentação quase inexistente”, por não haver factos que provem a fraude fiscal.
Já para a Acusação, Carlos São Vicente criou a partir de determinada altura uma “espécie de negócio consigo próprio, dentro do grupo AAA [de que era proprietário], causando o desvio de fundos públicos”.
Com este esquema, quando um segurado o contactava, através da AAA Seguros, em Angola, o empresário faria contratualização com empresas do grupo fora do país, fugindo aos impostos em Angola.
Esta estrutura “em nada veio a beneficiar o Estado angolano” e “apenas beneficiou o grupo de empresas AAA”, lideradas e já controladas, na altura, por Carlos São Vicente, referem os magistrados do Ministério Público.
A base de contacto das Bermudas serviu “unicamente para inflacionar os prémios pagos pelas petrolíferas, tendo sido usada como forma de ludibriar os incautos”. E, pela burocracia existente, “Angola deixou de existir como ‘produtora de petróleo’ e as Bermudas passaram a ser um novo ‘produtor’ de petróleo”, já que os negócios eram feitos através daquele país.
Desta forma, a Acusação considerou também que o empresário prejudicou a estratégia da Sonangol para fomentar o empresariado nacional, “causando consequentemente graves prejuízos para o tesouro angolano”.
“Na verdade, fruto de tais mudanças estruturais perpetradas pelo arguido, dos prémios pagos pelas petrolíferas apenas 50% seguiam o curso normal do mercado internacional, sendo que da outra parte, 15% eram encaminhados para a AAA Reinsurance e os restantes 35% eram encaminhados, em forma de comissões, para as restantes empresas offshores do grupo AAA”, adianta o despacho.
Além disso, e “sem qualquer justificação”, os prémios passaram a “sofrer aumentos significativos e as franquias subiram para valores muitíssimo acima” dos anteriormente praticados.
Deste modo, franquias que eram de dois milhões de dólares (1,8 milhões de euros) passaram a ser de 20 milhões de dólares (18 milhões de euros), sem que esta subida se repercutisse em qualquer redução nos prémios e comissões que estavam a ser debitados aos riscos em Angola.
Para a “sobrefacturação dos prémios de seguros, o arguido, por intermédio da AAA Corretores de Seguros Lda., em determinadas situações, procedia à indicação de várias comissões dos intervenientes no negócio e, noutras vezes, de forma discricionária, lançava mão de outros critérios que melhor lhe convinham adoptar, uma vez que era ele, arguido, quem estabelecia o valor a cobrar-se a cada operador”.
Por outro lado, a AAA Reinsurance [nas Bermudas], detida ppor Carlos São Vicente, passou a ser a empresa que cedia os negócios no mercado internacional e “quaisquer benefícios que o volume de negócios pudesse oferecer, tal como, a comissão de lucros resultante da boa experiência de sinistralidade, passou a ser paga” naquele país e “não, como deveria ser, aos respectivos segurados em Angola”, salientava ainda o texto da Acusação.
No que diz respeito aos prémios de seguro, os pagamentos eram efectuados directamente na conta da AAA seguros SA no Hong Kong and Shanghai Banking Coporation (HSBC), sedeado em Londres, e desde aí, eram feitas transferências para as resseguradoras, acusam os procuradores.
Em virtude deste cenário criado pelo arguido, “nos anos de 2009 a 2015, verificou-se um volume de comissões pagas ao grupo AAA, ou seja, cerca de USD: 1.299.222.331,00″, refere a acusação.
A acusação sublinhou que “nem uma única” destas comissões deu entrada no território angolano, verificando-se “uma marcada fuga ao fisco, pois se essas comissões tivessem sido pagas em território angolano, teriam sido declaradas nos balanços e contas da AAA Seguros SA, com as devidas contribuições ao Estado, em regime de impostos, revertendo para o tesouro nacional”.
Isto, apesar de a AAA Seguros estar “vinculada a partilhar as comissões de cedência e de proveito de resseguros, resultando do negócio com as demais co-seguradoras”.
Ora, no quadro do regime especial de co-seguro obrigatório do ramo petroquímico, do qual a AAA Seguros SA era líder e que partilhava uma comissão com a Ensa, numa divisão 55%-45% respectivamente, o arguido deduzia da seguradora pública uma comissão de gestão administrativa adicional e a empresa estatal “tinha menos ganhos do que os que tinha direito por lei”, refere ainda o texto da Acusação.
A justiça angolana considerou que Carlos São Vicente “sonegou às várias co-seguradoras os montantes das comissões que por lei teria de pagar em função das percentagens das participações estabelecidas por cada seguradora”.
“De forma incontroversa”, como refere o relatório, citado no despacho de acusação, produzido pela Agência Angolana de Regulação e Supervisão de Seguros (ARSEG), foram “extirpados do tesouro nacional, um montante acima de USD: 1,200.000.000,00 relativo às comissões indevidas”.
Folha 8 com Lusa
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